O JESUS HISTÓRICO (out 2009)
Introdução
Este
tem sido um tema controverso e causador de muitas polêmicas. A pessoa de Cristo
sempre foi alvo de especulações e por isso, não era de se admirar que não só
sua deidade, mas também a historicidade de Jesus fosse questionada. Esse
questionamento iniciou-se por vota do século XVII, onde as pessoas não mais
aceitavam os modelos de interpretação propostos até então e começaram,
principalmente na Europa, dar início a questionamentos sobre a pessoa de
Cristo. A pergunta da problemática é mais ou menos esta: Temos base histórica
objetiva suficiente para acreditar na pessoa de Jesus Cristo?
Este
trabalho se propõe a discutir esse dilema sob a perspectiva de alguns autores
que se dispuseram a defender a historicidade de Jesus, sob a qual sua obra e
sacrifício se apóiam.
A Problemática
Schillebeeckx afirma que esse
interesse moderno pelo Jesus histórico na verdade, não é conseqüência da
moderna consciência histórica, mas é questão essencial para o cristianismo,
porque confessamos na fé acerca do homem histórico, Jesus de Nazaré, e não
acerca de figura mítica, que Ele é o Messias ou o Cristo. O que o autor na
verdade está querendo dizer é que a necessidade desta investigação está na
própria necessidade cristã de crer em um Jesus que viveu como homem, cresceu e morreu
como tal. Para que a obra de Jesus pudesse ser eficaz, havia a necessidade da
encarnação; Deus precisava tomar a forma humana para salvar o homem. Isto não
poderia ser feito por um espírito e muito menos inventado por uma histórica de
mitologia.
Nos
vários momentos do cristianismo, Jesus assume um significado particular que
estava em boa parte relacionado com a idéia e o conceito que as pessoas faziam
dele. Por exemplo, na carta aos Hebreus, Jesus é o sumo sacerdote celeste. Na
idade média e alta, Jesus é aquele que trouxe propiciação e nos redimiu. Já o
iluminismo viu nele a imagem por excelência da moralidade humana e assim por
diante.
Da
mesma forma, podemos, a partir de cada experiência de conversão, fazer nosso
próprio conceito a respeito de Jesus, o que não significa ser este conceito
fidedigno de quem Jesus realmente foi enquanto Homem-Deus. Daí vem a
importância da questão histórica: Quem foi realmente Jesus de Nazaré?
O
estudo livre das Escrituras, isto é, à parte e sem a tutela da igreja, foi
motivo de muita crítica e relutância por parte da igreja que temia que o método
histórico-crítico pudesse criar um abismo entre o Jesus histórico e o Cristo da
fé. Essa relutância, no entanto, foi deixando de ser, na medida em que a
própria igreja via na pesquisa, um meio de reafirmar a pessoa de Cristo, de
forma empírica e histórica.
Todavia,
parece que toda a questão em cima do Jesus histórico e do Cristo da igreja, era
menos cristológico e mais uma luta contra a patente exclusivista de
interpretação das Escrituras.
Mas todo esse dilema teve na verdade vários momentos dentro da história moderna. O primeiro se desenvolve no fim do século XVIII até o início do século XX. Por um lado vemos a teologia liberal dominada pela busca do Jesus histórico, e por outro, estudiosos tentando justificar o cristianismo em face de todas as pressões sofridas. Schweitzer põe fim à questão dizendo que não é possível uma biografia do Jesus histórico, visto que o máximo que se consegue são imagens de Jesus sob a ótica de seus pesquisadores.
O
segundo momento vem de Bultmann que tenta tirar a importância do Jesus
histórico dizendo que para a nossa salvação importa tão somente o Jesus da fé.
Para ele, o querigma pós-pascoal sobre Jesus suplanta a mensagem do Jesus
histórico.
O
terceiro momento foi proposto por Käsemann, que rejeita a dissociação entre o
Jesus da fé e o Jesus histórico. Para ele o Jesus terrestre está incluído na nossa
fé no Cristo, mas não pode ser retirado desta, com pena de tornar-se uma fé
gnóstica.
Sendo
assim, história de Jesus e querigma se contrapõe invariavelmente e a pergunta
torna-se mais insistente: existe de fato uma importância crucial em se conhecer
a relação entre o Jesus da fé e o homem que viveu de fato? Há a necessidade
dessa prova para nossa fé e consequentemente salvação? Ou ainda, há alguma
diferença crucial entre aquele Jesus que viveu entre os judeus e o Jesus que
temos crido pela fé durante todos estes anos?
Basicamente
três correntes se envolveram nessa polêmica a fim de dar uma explicação
plausível para a questão.
A
primeira foi o racionalismo do século XVII que não aceitava mais o argumento da
autoridade, mas ditava que a razão deveria prevalecer. Hegel, influenciado por
Kant, usa a célebre frase “o que é real é racional” para mostrar como, a partir
de agora, as coisas deveriam caminhar.
A
segunda linha foi o positivismo histórico que tinha basicamente a mesma
mentalidade do racionalismo, onde tenta mostrar que é necessário chegar-se à
verdade objetiva, documentada, contra as tradições ou mitos que sustentavam
aleatoriamente tantas instituições e crenças.
Esse
estudo crítico e sério chegou ao Novo Testamento e mostrou que na verdade, os
evangelhos não são uma biografia de Jesus, mas testemunhos de fé, frutos das
pregações das comunidades primitivas. De fato, os evangelhos tornam-se uma
interpretação de fatos de homens que viveram com Jesus, de acordo com sua
ênfase ou entendimento. Prova disso é que temos textos paralelos nos evangelhos
sinóticos com ênfases completamente diferentes.
Passa-se
então de uma fé tranqüila que apenas cria sem questionamentos para uma negação
enfática de Jesus, dizendo que Ele na verdade foi um mito.
Diante
dos resultados da crítica, eles na verdade buscavam motivos mais sólidos para
continuar crendo, uma garantia que não estava simplesmente se curvando a uma
pessoa que nunca existiu.
Apesar
de muitos estudiosos tentarem reconstruir a história de Jesus, retirando-se do
texto sagrado aquilo que julgavam ser essencialmente interpretações dogmáticas,
foram barrados pelo círculo hermenêutico que dizia que toda narração sempre é
construída debaixo de interpretação.
Por
isso o projeto da exegese histórica também fracassou como terceira corrente, e
Bultmann declara definitivamente que é impossível construir a imagem perfeita
do Jesus histórico e que na verdade a fé não precisava disso para sobreviver.
Para ele a única coisa que interessa é o fato de Jesus ter nascido, vivido e
morrido entre seu povo. Para ele o próprio Novo Testamento não permite a
construção de um querigma auto-suficiente, mas deixa propositadamente a dúvida
para que o sentido de fé fosse satisfeito.
Apesar
da impossibilidade de se produzir uma biografia da pessoa de Jesus, a descrição
das características fundamentais de sua proclamação, ação e destino, é
perfeitamente possível. Por isso, parece que a visão dominante hoje é a de que
podemos saber muito bem o que Jesus estava empenhado em realizar, sabemos muito
a respeito do que Ele disse e que estas coisas têm sentido no mundo do judaísmo
do século primeiro.
Swidler entende a extrema
dificuldade para se chegar a uma imagem clara e que tenha autoridade do Jesus
histórico. Mas à medida que podemos, diz ele, devemos chegar o mais próximo
possível.
A
consciência dessa limitação permitirá que a pessoa evite, por um lado, a
ingênua certeza absoluta, e por outro o ceticismo total. Há de se prosseguir
sempre abertos para novas evidências, intuições, perspectivas e mudanças que
porventura venham a ocorrer.
Uma
outra questão tratada por Swidler diz
respeito ao que Jesus ensinava e o que ensinavam sobre ele. Nesse ínterim, não
se pode limitar aos ensinamentos de Jesus somente aquilo que saia de sua boca,
mas deve-se incluir aí o próprio eu de Jesus (seus pensamentos) e cada uma de
suas ações (o que fazia) como conseqüência de seus pensamentos. A pessoa
relatada pelos discípulos era obviamente o resultado dessa experiência.
De
acordo com Schillebeeckk, mais ainda
do que seus pensamentos e palavras, a Bíblia registra relatos que jamais foram
ditos por Jesus, mas se compõe de criações que foram feitas em outros contextos
e situações por discípulos convictos de que Jesus continuava falando através do
Espírito Santo, e, portanto, suas mensagens deveriam fazer sentido também para
aquela época em que escreviam e por que não dizer até os dias de hoje.
E
talvez por isso, o problema do Jesus histórico não era problema para as
primeiras comunidades. Eles tinham a plena consciência de que, primeiro, Jesus
estava vivo, segundo, eles tinham testemunhado a vida de Jesus ou pelo menos
conheciam pessoas que testemunharam e, terceiro, o Jesus continuava falando
através do Espírito Santo de Deus que havia sido derramado no pentecoste.
Por
esta razão, temos de aceitar que a revelação cristã não pôde chegar até nós sem
a intervenção eclesial, ou seja, o que temos escrito é fruto de uma experiência
profunda da igreja primitiva com o Jesus histórico, mesmo que essa ligação e
experiência não possam ser empiricamente comprovadas.
Jeremias também nos provê
razões que corroboram para a credibilidade em um Jesus histórico, não
inequívocas, mas dignas de respeito.
A
primeira é com relação ao uso do aramaico por Jesus. Esta questão é de extrema
importância porque de acordo com muitos autores, esse era um tipo comum de
idioma utilizado na Galiléia dos tempos de Jesus, e muitas palavras ditas por
Jesus estão nos textos populares aramaicos do Talmude e dos midrashim.
Vocábulos
como pai, vir, senhor, Deus, eu, filho e muitos outros, encontram-se nos lábios
de Jesus na sua forma aramaica. Com isso não se quer dizer que Jesus não
dominasse o Hebraico, mas, sobretudo, que esse não era o idioma corrente na
época.
O
modo de falar de Jesus também é um importante fator para a crença na sua
credibilidade histórica. Jesus utilizou-se de uma forma bastante expressiva do
passivo divino em seus ditos.
Obviamente
que Jesus utilizou sem embaraço a palavra Deus em seu vocabulário, mas também
aderiu ao modo de falar corrente da época, contando do agir de Deus de modo
perifrástico. Um exemplo desse uso se encontra em Mateus 5:4, onde a melhor
forma de tradução seria: “bem-aventurados os que sofrem, porque há alguém que
os consolará”, e o texto de Mateus 10:30 “há alguém que contou os cabelos de
vossa cabeça”.
Mas
ao contrário do que se possa imaginar, este fenômeno é quase ausente na
literatura do talmude. De onde então se origina este modo de falar de Jesus?
Sem dúvida, este modo está bem presente na literatura judaica apocalíptica, que
aparece de forma abundante em Daniel.
Todavia,
Jesus expande o uso do passivo e não o reduz somente às suas falas de
acontecimentos escatológicos, mas o estende também ao agir gracioso de Deus já
no presente: Deus já perdoa, Deus já protege, e mesmo agora já anuncia a
presença do tempo salvívico.
Outra
forma utilizada por Jesus é o paralelismo antitético. Este modo de se expressar
aparece mais de cem vezes só nos evangelhos sinóticos. Dentre os inúmeros
exemplos pode-se citar Mateus 6:19-20 “Não
ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os
ladrões minam e roubam; Mas ajuntai
tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões
não minam nem roubam”.
E
por que o uso peculiar de Jesus do paralelismo antitético é importante?
Basicamente por 4 razões. A primeira é que observa-se o seu uso nos quatro
evangelhos sinóticos de forma praticamente unânime, inclusive quanto à
quantidade de palavras utilizadas.
A
segunda é que tanto Mateus quanto Lucas derivam o uso dessa forma basicamente
do material recebido de Marcos, sem acrescentar nada novo em suas escritas.
O
terceiro motivo trata da acentuação do segundo membro do paralelismo antitético
usado por Jesus na maioria dos seus ditos, ao contrário, por exemplo, do seu
uso na literatura do Antigo Testamento. Isso é importante porque nem sempre
podemos ter certeza sobre qual metade do paralelismo Jesus está dando ênfase,
como por exemplo, em Mateus 23:12, mas podemos inferir pelo uso quase esmagador
da ênfase na segunda metade.
A
última razão é com relação ao uso constante dessa figura de linguagem pelo
judaísmo antigo na formulação de provérbios sapienciais, princípios doutrinais,
verdades de vida e na apocalíptica. Jesus a utiliza primeiro porque era uma
forma comum de figura de linguagem e segundo pelo caráter vigoroso e incisivo
de se ensinar uma verdade.
Conclusão
Como
visto, esta é uma questão particularmente difícil de ser resolvida. Primeiro
porque não dispomos de material escrito por Jesus, apenas testemunhos oculares
de sua vida e obras, e segundo porque estamos tentando submeter uma literatura
antiga que não tinha pretensões biográficas, a um conceito de veracidade
histórica atual que criou padrões que nem sequer eram sonhados na época. O que
se pode dizer é que é um processo no mínimo covarde.
Todavia
não podemos simplesmente apelar para a fé ingênua e deixar que os críticos
zombem da razão do nosso crer. Creio que devemos, tanto quanto estiver ao nosso
alcance, usar todas as ferramentas que dispormos para chegar o mais próximo
possível do Jesus que viveu entre nós. Obviamente que nossa fé não deve estar
apoiada na prova inequívoca da existência de Jesus, porque senão deixa de ser
fé e passa a ser ciência, mas precisamos e devemos usar tudo o que estiver ao
nosso alcance para mostrar que temos uma fé viva, baseada em um Jesus vivo, que
nasceu, viveu, morreu e ressuscitou como diz as Escrituras.
Bibliografia
Swidler,
L. Jesus histórico, cristologia,
ecumenismo. São Paulo: Paulinas, 1993.
Schillebeeckx,
E. História humana – revelação de Deus.
São Paulo: Paulus, 1989.
Hilgert,
P. R. Jesus Histórico ponto de partida da
cristologia latino americana. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
Schillebeeckx,
E. Jesus a história de um vivente.
São Paulo: Paulus, 2008. Jeremias, J. Teologia
do Novo Testamento, São Paulo: Paulus, 2004.
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